domingo, novembro 14, 2010

O nosso futebol é um prédio sem escadas.

Victor Geovetty Barros: O nosso futebol é um prédio sem escadas

Vivemos numa época em que todos concordam ser de crise geral no futebol. Ausência de craques, clubes que não conseguem ir além da primeira fase nas Afrotaças, à semelhança das selecções jovens e agora a saída de rompante do treinador francês Hervé Renard, que evoca desorganização na Federação Angolana de Futebol (FAF). Para si, exsecretário-geral dessa instituição e ex-Director Nacional dos Desportos, qual é a solução? 

Não existem soluções mágicas. A magia não resolve o problema. Continuo a pensar, como todo o mundo que acompanha o desporto como uma actividade regular e estruturada de um país, que temos de atacar os fundamentos. Criar a coluna vertebral de uma estrutura organizativa, que permita que se alcance os resultados que todo o mundo espera e quer.
E parece que, nalguns casos, para além da questão organizativa e da disponibilidade financeira, porque fazer actividade desportiva requer disponibilização de verbas a tempo, há que encontrar do ponto de vista administrativo, uma organização eficaz e eficiente e para tal deve haver estruturação com cabeça, tronco e membros.
Não se deve centralizar as actividades. Temos os exemplos práticos do basquetebol e do andebol pela continuidade dos bons resultados.
Há melhor organização no Basquetebol e no Andebol? 
Os resultados falam por si. Tenho como princípio a árvore de bons frutos. Ora, bons frutos, para nós desportistas, são os resultados ganhadores. É evidente que não devemos pensar que haja desorganização. E se há ela é leve e é preciso que as pessoas que estão ligadas a esta área façam avaliações periódicas dos seus desempenhos. Temos de nos habituar a fazer avaliações dos nossos resultados. Não nos podemos ficar pelas vitórias morais, como Portugal fazia há alguns anos. Não podemos perder muitos jogos e ficar pelas vitórias morais. Não podemos assistir a situações lamentáveis e inaceitáveis e dizer que tudo é positivo. Temos de admitir que todos erramos, temos momentos baixos e altos, e, então, é necessário fazermos avaliações de dois em dois anos e se os resultados não estiverem lá, é melhor não virmos com discuros de que são positivos, e de que nós tivemos isso quando não tivemos. O positivo é o fruto bom, e o fruto bom são as vitórias.
A culpa é só da desorganização da FAF ou também dos clubes que menosprezam a formação e das entidades que não concedem as verbas a tempo? 
É evidente que todos nós somos culpados. E não há um só culpado especificamente. Porque se olharmos para todos os sectores da vida do país encontramos áreas ineficazes. Mas a Federação Angolana de Futebol tem de fazer a descentralização das áreas em formação e alto rendimento. As áreas dos subs é de formação e a Olímpica e a Senior de alto rendimento, portanto é preciso descentralizar. A área de formação tem de ser contínua com campeonatos provinciais, e tudo o resto, para a selecção de valores. Essa área não pode actuar apenas quando tem actividades.
Mas digo todos, porque se olharmos para muitos sectores da vida do país vamos constatar muita ineficácia em muitos sítios e isso toca a todos. É como o corpo humano: um órgão, por mais pequeno, que não esteja a funcionar como deve ser, afecta todos os outros órgãos.
É compreensível que a FAF não tenha hoje um director técnico com formação desportiva, não venda o suficiente o seu produto(futebol) como deve ser? Não acha que há falta de estratégia de se ir buscar dinheiro noutra fonte que não o Estado? 
Não, não acho. Se for ver, em muitas empresas a sua estabilidade financeira não existe. O país está do ponto de vista financeiro mal, consequência da crise financeira. As empresas que fazem publicidade, fazem-no com muito esforço, por serem estratégias do ponto de vista político, porque não acredito que haja muitas empresas com disponibilidade financeira para investir no futebol. E temos de pensar sempre que a publicidade não é uma doação, é um negócio e tem de se tirar resultados disso, ainda que os resultados seja aparentemente invisíveis.

O senhor está a dizer que os resultados negativos das selecções nacionais afastam as empresas interessadas em publicitar no futebol?
É evidente. São poucos os casamentos que são feitos na base do amor. São sempre feitos na base de interesses. Mas é necessário estar lá dentro para entender quais são as dificuldades que as pessoas vivem.
Há quem afirme que os treinadores europeus têm dificuldades em trabalhar em Angola ou em África devido ao amadorismo do seu futebol. Acha que essa é a razão principal da renúncia do treinador francês Hervé Renard? 
Acho que sim. Aliás, não só estrangeiros, porque mesmo os nacionais imbuídos da cultura do profissionalismo, da responsabilização e da planificação, quando começa a faltar isso, começam a pôr em jogo a sua própria dignidade, o seu nível de profissionalismo e o curriculum no futebol é importante. Basta lembrar aquela altura em que a selecção teve de treinar no parque auto da Cidadela.
Para um país que organizou um CAN, é de todo incompreensível. Não há justificações possíveis, temos de admitir que a culpa é nossa. E como estrangeiro, e julgando que nós queremos bem as nossas selecções, ver-nos deixar treinar a equipa naquelas condições é compreensível que ele exija mais, apesar de ter dito que tinha encontrado boas condições. Porque teve apenas alguns dias de boas condições e tudo o resto foi muito mau…para ele se desencantar com o projecto para o qual foi convidado, ao ponto de escrever uma carta de rescisão, é porque o menos foi maior do que o mais que o encantou de inicio. E não vale a pena criar acusações contra o senhor, temos de colocar os pés no chão e dizer que falhamos. Muitas das vezes essa falha não é própria, é causada por situações indirectas. Por exemplo, quando se fala em atraso de salários não é directa, é indirecta.
A gestão de Armando Machado, da qual o senhor fez parte, tinha pouco dinheiro, segundo vocês, mas ainda assim conseguiu construir um hotel e a sede da Federação Angolana de Futebol (FAF). Como se explica que a actual não consiga fazer algo palpável? 
Confesso que primo em não fazer qualquer consideração. A visão de cada um deve ser respeitada e não gosto de entrar em comparações, porque é sempre melindroso, fere susceptibilidades, os tempos também são diferentes e não conheço a fundo a actual gestão para me pronunciar com propriedade. Os modelos organizativos são muito importantes. Lembrome que com 600 mil dólares por ano conseguimos governar bem, hoje 600 mil dólares não chegariam. Então, é difícil fazer julgamentos aos outros sobretudo quando nós estivemos também dentro do processo. Agora, é preciso saber por que é que eles não fizeram. Só eles é que podem justificar e se calhar até com argumentos aceitáveis.
NÃO VEJO OBRA DOS TREINADORES ESTRANGEIROS 
Porque é que com estas queixas de falta de dinheiro, os dirigentes da FAF, e não só, insistem em contratar treinadores estrangeiros, que são mais caros? Não há treinadores nacionais competentes? 
Não diria que não existam, temos é treinadores teimosos e com falta de cultura mental que tragam ao desporto resultados positivos. Volto ao exemplo do Andebol e do Basquetebol, que são os principais nichos de organização desportiva, que conseguiram formar treinadores angolanos e esses ganham competições nacionais e internacionais. O futebol precisa de ganhar nova estrutura mental, dando formação aos treinadores como deve ser feita.
E não seminários como temos vistos.
Formação dos dirigentes e de modelos de competição racionais. Portanto, é preciso fazer uma remodelação completa, definir que tipo de desporto seguirmos, o que fazer. Vemos na segunda divisão equipas a desistir, porque não temos definido o perfil de quem deve competir nas competições de alto rendimento interno. Há tempos ouvi que uma equipa de rua da Lunda-Sul se juntou para vir jogar em Luanda na segunda divisão, e depois não chegou a vir por causa disto ou daquilo, portanto, temos de estruturar o nosso futebol para que isso não aconteça.
Mas isso também não terá a ver com a necessidade de actualizar a Lei do Sistema de Base do Desporto e a ausência da Lei do Mecenato, que se julga útil para o desporto? 
Estes são idealismos que só têm valor quando passam para a prática.
Há quanto tempo andamos a falar em Lei do Mecenato? Mas temos de partir dos problemas macros para chegar ai, porque enquanto fui secretário-geral da Federação Angolana de Futebol, só havia uma empresa cervejeira que patrocinava o futebol, quando na África do Sul havia uma empresa que dava à federação local cerca de 20 milhões de rands, cerca de quatro milhões de dólares. E no nosso país qual é a empresa que é capaz de fazer isso? Gostaria que me apontassem uma empresa. Andamos todos a correr e todas elas não têm. Os contratos que as nossas empresas fazem é de 150 mil dólares e já é muito. Esse valor não chega para pagar um jogo e uma vez escrevi para o Jornal dos Desportos porque nós discutimos muito o futebol e não vemos os custos.
Mas voltando aos custos de contratação de um treinador estrangeiro: É evidente que é muito mais caro contratar um treinador estrangeiro e mesmo assim os resultados não surgem, porque se você não tem uma escola onde os jogadores possam fazer um percurso dos escalões de formação até ao topo, é uma mentira contratar treinadores estrangeiros para virem ganhar campeonatos. E peço desculpas a quem esteja a ler esta entrevista. Reparem nas entrevistas que os jogadores de basquetebol concedem e comparem-nas com as dos de futebol, há uma enorme diferença. E jogar futebol é fazer exercícios geométricos… triangulações, passes curtos e tudo o resto. E se você não tem formação enfrenta problemas. Então, a formação é que devia ser a prioriedade dos nossos dirigentes e não a contratação de treinadores estranegiros. Vejam o que aconteceu com o Mantorras. Cá, andava-se com preocupações com os seus malabarismos, em Portugal o dirigente português arranjou-lhe uma professora de português porque é fundamental a formação académica e desportiva. E não se pode gastar com um treinador dez mil dólares por mês, estou a partir dos valores muito baixos porque há quem ganhe mais, quando temos problemas de formação. E temos treinadores licenciados, mas ninguém os vais buscar.
Portanto, nós próprios angolanos é que somos maus connosco. Ninguém valoriza os quadros nacionais, muitos dos quais formados com o dinheiro do Estado... E até agora não vejo obras dos treinadores estrangeiros.
Acha que existe um paradoxo entre a reclamação dos dirigentes da falta de dinheiro e a contratação de treinadores estrangeiros por valores altíssimos? 
É absolutamente evidente… 
Quase todos queixam-se da ausência de grandes jogadores, mas os clubes não investem na formação nem os que recebem maiores dotações financeiras, como é possível ter craques neste contexto? 
Eu também gostaria de compreender. Por isso é que um dia disse que o nosso futebol era uma mentira.
Ao invés de começarmos a formar com qualidade para retiramos os craques que o nosso futebol precisa, menosprezamos a formação.
Como podemos querer ter grandes jogadores? Os alemães têm uma metodologia cujo objectivo é colocar de dois em dois anos jogadores novos na Selecção para ir renovando e manter ao mesmo tempo os resultados, e veja-se qual tem sido o percurso da Alemanha. Mas aqui não vemos, nem nas equipas principais, jogadores dos sub-20. Isto é um atestado de incapacidade, um sinal de que não há trabalho organizado e inteligente na área da formação. E o problema começa nos treinadores que têm. Eles não estão capacitados metodológica e pedagogicamente para ensinar. Nessas faixas etárias é necessário ter-se pessoas conhecedoras e pacientes.
Como é que se explica haja tantas pessoas desinteressadas em desenvolver o futebol, mas são essas mesmas pessoas que são indicadas para dirigir os clubes ou as federações? 
Não lhe sei explicar. Devem ser os presidentes dos clubes a responder. Nós continuamos a viver uma situação um pouco atípica, porque não pode uma pessoa sair de casa e de repente quer ser presidente da Federação Angolana de Futebol.
Deviam ser os clubes a propor e não as pessoas de motu proprio. Nunca vimos sequer os presidentes dos clubes a reunirem-se para discutir, por exemplo, a questão da arbitragem.
Os clubes é que têm de escolher as pessoas capazes de gerir os seus interesses e não deixar que apareçam pessoas que prometem pagar isto ou aquilo para se elegerem.
O dirigente é o resultado dos associados. Esse tipo de desporto não existe, portanto, temos um desporto patronizado. A própria Lei do Sistema de Base do Desporto não é aplicável, porque diz que para se criar uma federação é necessário ter 15 clubes, mas existem federações que não cumprem com esse número.
Ou seja, no nosso desporto prevalece o informal, a minha vontade. Tenho de esperar a minha vez para facturar um pouco quando for convidado para um clube ou federação. Ou seja, as coisas não vão melhorar muito mais do que isso.
AS PESSOAS NÃO QUEREM ORGANIZAÇÃO 
Até quando é que se vai andar nesta situação? 
Até quando a nossa mentalidade for estruturada e organizada.E a culpa não é de ninguém em particular, é de todos. Tive vários convites para trabalhar em muitos clubes em Angola e disse-lhes que aceitava, mas tínhamos de estruturar o clube assim, assim… assim...nunca mais fui contactado, porque as pessoas não querem organização.
A organização obriga à fiscalização, organização requer avaliação em determinados períodos para analisarmos o que cumprimos e o que ficou por se fazer. Mas as pessoas não querem isso. Recebi convistes do tipo, “vem trabalhar aqui pago-te x”, mas quando lhes pergunto como vamos estruturar o trabalho, onde começam as minhas atribuições e a do presidente para depois pedir-se contas... ninguém quer isso.
Como é que se resolve o problema na FAF? 
Resolve-se com o debate das situações. E a Federação Angolana de Futebol até já teve um encontro que foi rico porque participámos todos, mas até hoje não sabemos porque é que não se aplicaram as recomendações. O futebol não irá melhorar com individualidades mas com discussão colectiva. Porque pode existir uma pessoa que pense alto, mas se a maioria não estiver a pensar no mesmo nível não há avanços. Ou seja, se um homem estiver no terraço de um prédio, o outro estiver no terceiro andar e outro no rés-do-chão cada um deles terá uma visão diferente.
E é necessário que todos estejam ao mesmo nível para terem uma visão idêntica. E não podemos cada um puxar a brasa à sua sardinha. É preciso encontrar um denominador comum para existir uma fracção, como se diz em Matemática.
Diz-se que na Federação Angolana de Futebol não há dinheiro, como se explica então a guerra de muitas pessoas para serem presidentes da FAF? 
Também acho estranho ver essa loucura das pessoas para serem presidentes das federações. É uma situação que me aflige, e me aflige pelo seguinte: tive a oportunidade de conhecer as estruturas das federações de mais de 50 países e os membros das federações eram todos indivíduos com posses financeiras.
Eu próprio quando me perguntaram qual era a minha actividade em Angola e disse que era funcionário público, perguntaram-me como era possível que fosse secretário-geral da FAF. Relativamente ao próprio Armando Machado procuraram saber como é que ele era presidente da FAF. Mas quando souberam que era empresário e tinha certos rendimentos anuais eles aceitaram, porque se você não tem posses financeiras acontece aquela história do mecenato… o indivíduo lá quando tem muito dinheiro e não sabe onde colocar, candidata-se a uma federação e coloca ali o seu dinheiro, o que ajuda sempre o Estado. Ou seja, procuram ser figuras públicas através do futebol, mas colocando o seu dinheiro. 
Por exemplo, o presidente da Tunísia, na época, era o maior prorietário dos carrocéis naquele país e o secretário tinha duas grandes panificadoras e colocava o seu dinheiro na federação. Desse modo, os problemas ficam suavizados, mas cá no país é ao contrário. Não quero acusar ninguém, eu sei porquê. Tive, aliás, problemas pessoais por causa disso. Ou seja, as pessoas vão para as federações porque podem tirar algum. A única explicação que eu encontro é esta.
Não se ganha nada no Girabola, mas os dirigentes buscam sempre treinadores estrangeiros, porquê? 
Não sei. Não me vou explanar mais sobre isso. Vocês façam uma pequena investigação e saberão as razões.
Quando digo não sei, sei, mas não quero entrar em polémicas. Quem sou eu para estar agora a apontar o dedo às pessoas, vou resolver o quê? Não vou resolver nada, as coisas vão continuar tal como estão, e eu é que fico mal com as pessoas. Portanto, não sei.
O futebol ganha o quê com os treinadores estrangeiros? 
Até agora não vi nada. E se alguém viu, que me mostre. Eu não concordo nem para a formação com a contratação de um treinador estrangeiro. Acho que os clubes que têm de formar pessoas, podem enviar essas pessoas para o estrangeiro. Aliás, há uma orientação do Ministério da Administração Pública para que haja ao lado de um treinador estrangeiro um nacional e ao fim de dois anos esse nacional deve dar continuidade ao trabalho deixado pelo estrangeiro.
Mas porque é que as pessoas insistem nesta teimosia? Não sei. Eu continuo defensor disso, lutei por isso e se calhar paguei esta factura e outras.
Hoje estou a trabalhar para constituir uma academia do desporto, onde vamos procurar formar de maneira sólida os treinadores. Estou à procura de dinheiro e não é muito, apenas cinquenta mil kwanzas por mês para arrancar o projecto, que é fazer formação porque temos carências enormes. E depois lutar para que se dê lugar aos treinadores nacionais.
É válida ainda a sua afirmação de que o futebol nacional é uma mentira? 
No fundo o termo podia ser o mesmo, não está estruturado. Ou seja, é um prédio sem escadas. Como é que você sobe para os andares seguintes sem escadas? É preciso formar rapidamente treinadores e reciclarmos os que temos. Aliás, há uma empresa italiana que se prontificou em trazer treinadores para dar formação. Então quando formos para o estrangeiro é para buscar treinadores de qualidade.
Não se trata de ofender ninguém, mas entendo que o treinador de qualidade não se pode resumir à conquista de campeonatos nacionais.
Teixeira Cândido
8 de Outubro de 2010

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